Querido leitor, se você já leu o meu nome alguma vez aqui, pôde notar que o meu sobrenome é Rodrigues. Com isso, o astuto leitor pode, também, supor a origem desse nome. Se não pode supor, existe uma grande chance de termos um fator preponderante em comum: o sangue lusitano corre desgovernadamente em nossas veias, parceiro.
Então, podes imaginar que, há quase um século atrás, um tal Seu Rodrigues partiu de além-mar, com mais alguns patrícios, pra varar esse marzão rumo ao desconhecido e abrir uma padaria aqui. Tá, bisavovô não abriu uma padaria, mas o gosto pela culinária lusitana veio com ele, se transportando irremediavelmente através do DNA dos seus futuros predecessores.
Dentre as iguarias da culinária de nossos gentis colonizadores, destacamos especialmente uma: a linguiça alheira, convidada especial deste capítulo nesta novela da vida :-)
Bisavovô veio lá da terrinha, e numa casinha do bairro do Brás saboreava alheiras com o menino Renatinho, que viria a ser meu querido e saudoso vovô. O menino Renatinho cresceu (digo, ficou mais velho, porque grande ele nunca foi) e virou o Seu Renato Rodrigues, cultivou um suntuoso bigode e foi pra guerra. Guerra?
Momento história de família: Meu avô foi pra guerra como voluntário. Certa vez, eu perguntei porque ele foi voluntário, e a resposta foi sensacional: No dia do alistamento militar, havia um tenente carioca selecionando os possíveis soldados, já com a guerra em curso, e com a iminência do Brasil entrar. Pois em algum momento, o tal tenente falou, ou sugeriu, que paulista era tudo boiola e ninguém tinha coragem de enfiar o dedo na cara do alemão. Nesse momento, Renato, o marrento, levantou-se e bradou que tinha coragem sim ia mostrar pro tenente carioca com quantos bigodes se faz um chucrute. E assim, o bravo soldado Renato Rodrigues adentrou as fileiras da Força Expedicionária Brasileira. Ele nem queria ir, mas aquele tenente era folgado demais e isso não dava pra suportar.
E lá na guerra, o soldado Renato não parava de pensar nas tardes que passava com o pai, o Seu Rodrigues (então, falecido) saboreando acepipes. Ansioso pelas alheiras e com saudades do Brasil, o soldado Renato Rodrigues deu um jeito no alemão, acabou com a guerra (palavras dele. Vovô afirmava categoricamente que acabara com a guerra sozinho) e voltou ao Brasil para cair diretamente no colo de vovó, que já citamos largamente neste blog. Adiantando a história, vovó e vovô se casaram e tiveram dois lindos filhotes: papai e a minha tia Lídia.
A história se repetiu, e papai e vovô adquiriram o hábito de saborear alheiras com uma certa frequencia, como um ritual familiar, a ser passado do mais velho pro mais novo.
Mas a alheira não é uma linguiça muito fácil de se encontrar, e os fornecedores de alheiras que abasteciam vovô e o menino papai com sua mercadoria foram ficando cada vez mais raros, até que eles decidiram que era a hora de fazer a sua própria alheira. E assim fizeram, até que papai conheceu mamãe, eu nasci, cresci e todo final de semana tinha alheira na casa de vovó, pra saborearmos enquanto a refeição não vinha. Até que vovô veio a falecer, em 2002, e as alheiras acabaram rareando na casa de vovó. Aqui começa a nossa história pra valer.
Com esse blog e as consequencias gastronômicas que ele trouxe, achei que havia chegado a hora de me juntar a papai pra fazer o furdúncio na cozinha lá de casa e preparar as alheiras, pela primeira vez na minha vida. Baita honra, essa.
Nossa história começa no Mercado Municipal. Acordei cedo num sábado pra comprarmos os ingredientes no famoso templo do sanduíche de mortadela e um local sensacional pra comprar temperinhos e coisas que.. bem, que só tem lá. A visita ao mercadão, por si só, já dá um post. Portanto, vamos à receita, falo do Mercado Municipal em outro post. Entenda apenas que compramos tudo no sábado, pra prepararmos as alheiras no domingo.
Domingo, precisamente na hora marcada, toca o interfone e meu pai chega. Um pouco mais tarde do que ele gostaria e algumas horas mais cedo do que eu precisaria, começamos os trabalhos. Até porque, trabalho é uma palavra que define bem a produção das alheiras: parceiro, te prepara porque essa receita dá um puta trabalho. Prepara a picareta, o muque e a força de vontade.
O primeiro passo é cozinhar algumas das carnes. Na alheira, vai frango, e vários tipos de carne de porco. Comece jogando numa panela grande, 1kg de frango. No nosso caso, compramos a sobrecoxa, porque tem bastante carne e fica fácil desossar depois.
Junto ao frango, adicionamos 1kg de lombo de porco cortado em cubinhos. Cortamos o lombo em vários cubinhos do tamanho de uma borracha de escola. Isso, lembra aquela borracha que vem com a capinha verde? Então, pega a faca, lembra dela e picota o lombinho do mocotó. Manda todo mundo pra panela.
Um ingrediente comum a qualquer linguiça é a barriga do porco. Sabe o que é a barriga do porco? É como o bacon, mas não é defumado. É cru. CRU, mente maldita. Com o erre!! Recomendamos atenção a este ingrediente. Um pequeno deslize pode te levar a inserir a parte errada do porco na linguiça, e nós sabemos bem o que acontece quando a linguiça se relaciona com as partes erradas e nós não queremos isso na nossa receita, certo?
Passados os entraves morfológicos da barriga do porco, picote aproximadamente 400g de tal elemento em cubinhos muito pequenos e jogue na panela junto ao lombo e ao frango. Cubra com bastante água, e bote pra ferver. Se quiser jogar um ou dois dentes de alho, não passe vontade.
Prepare-se pra costurar. Isso mesmo que você ouviu. Costurar. Faça um recorte num pano de prato, tomando todo o cuidado para a patroa não perceber. Recomendo jogar o resto do pano fora. Bom, no quadradinho de pano, despeje umas 10 bolinhas de pimenta preta (é a pimenta do reino). Agora feche como um envelope, e dê um jeito de fechar. É aqui que entra toda a sua habilidade com a agulha e linha. Pra fechar direitinho, pode ser que você tenha que costurar o envelope. Larga mão de frescura, costura esse treco logo e manda pra panela.
Enquanto ferve, você tem uma missão: arranjar 1kg de miolo de pão italiano. É, essa é dificil, parece gincana. E sabe como você cumpre essa missão? Compra muito mais do que 1kg de pão italiano, descasca e guarda o miolo. Se você é malaco, e eu confio na sua destreza intelectual, guarde as cascas pra fazer torrada ou algo do tipo.
Se você demorou uma hora e meia pra buscar os pães e separar os miolos [/chuck norris], a carne deve estar pronta. Hora da pescaria!
Pesque cuidadosamente todos os pedaços de frango e guarde. Depois pesque todo o resto das carnes. E guarde a água, você vai precisar daquele caldo de porco e frango.
Com o frango, você deve retirar o ossinho do meio da sobrecoxa. Depois, seu trabalho é desfiar o frango. Como você vai fazer isso é problema seu. Entenda apenas que, das sobrecoxas que haviam ali, haverão apenas fiapos de frango, ok? Legal, feito isso, guarda esse frango ae.
O porco terá um final muito mais trágico. Encarne o seu pior momento Sexta-feira 13 e moa toda a carne de porco. Isso mesmo, passe tudo no moedor, e tenha em mente que você vai precisar de um. Sem dó nem piedade, todo o lombo e barriga de porco vão virar uma verdadeira pasta.
Estamos quase lá, ansioso leitor. Daqui pra frente, é basicamente misturar tudo e temperar. Mas vamos por partes.
Pensa comigo, você já tem 1kg de lombo de porco, 400g de barriga do mesmo suíno, 1kg de frango e 1kg de miolo de pão italiano. Ou seja, temos quase 3,5kg de comida, fora o caldo da panela que reservou. Diante desse fato, admitamos que temos muita comida, certo? Então você pode imaginar que vai precisar sapecar toda aquela comida em algum recipiente, pra misturar tudo e fazer aquilo virar uma linguiça, certo? No nosso caso, lavamos uma bacia da lavanderia e foi lá mesmo que preparamos a iguaria.
Bom, então prepara o muque que a labuta agora é cascuda. O trabalho consiste em jogar miolo de pão, lombo, barriga, frango e caldo das carnes, todo mundo na bacia, e misturar. Não tem milagre, tem que meter a mão e fazer força, muita força.
Papai, ao mexer os ingredientes, lembrava-se das duas vezes que eu repeti de ano, ou seja: usou de violência. Porém, desta vez não contra este que vos escreve, mas contra os nobres ingredientes. Para a sorte deste que vos escreve. Caso contrário, provavelmente não mas escreveria.
Enquanto isso, tratei de apelar para o bom e velho migué, e fui de fininho preparar o tempero pra jogar lá, mantendo papai ocupado.
O tempero não é difícil, não. Num pote grande, joguei umas duas xícaras de azeite extra-virgem. Depois dessa trabalheira toda, nem pense em usar o azeite mais barato, ou achar que azeite e óleo de girassol são a mesma coisa. Sem serviço porco, mande lá duas xícaras de azeite extra-virgem, do bom.
Picote, bem pequeno, 4 ou 5 dentes de alho. Aproveita que o ritmo tá bom pra picotar, e picote um maço inteiro de salsinha. Manda todo mundo pra dentro do pote.
Hora das pápricas! Jogue uma colherada generosa de páprica doce pra junto do azeite, alho e salsinha. E como páprica pouca é bobagem, adicione uma colherada igualmente generosa de páprica picante. Seu molho vai ficar uma pasta meio vermelha. E, pra ficar mais vermelha ainda, jogue uma colherada sarada de um negócio chamado Colorau, que é um tempero à base de Urucum, e sabe-se lá o que isso significa, mas aprendi isso no Mercadão. Tá feito o registro. Recomendo picotar umas 5 ou 6 bolinhas de pimenta biquinha, porque essa fica gostosa até em pão com margarina.
Uma boa golada de sal dentro do seu tempero e pronto, basta misturar tudo e jogar na bacia. Faça como eu, convença o seu pai a mexer um pouco mais pra misturar o tempero ao resto das coisas. Isto posto, papai se cansou um pouco mais e mexeu aquilo tudo.
A linguiça tá pronta. Mas você não vai colocar a carne na tripa, aquela coisa toda, caro blogueiro? Não vou não, distinto leitor. A tradição familiar fez com que meus antepassados preparassem as alheiras sem, necessariamente, enfiá-las tripa abaixo.
Normalmente, enche-se a linguiça, e coloca-se um gomo na frigideira, pra tostar. A linguiça incha, por conta do pão, estoura e você frita aquela carne. Sendo assim, o senso prático dos Rodrigues achou que o baita trabalho de encher a linguiça não valia a pena se, ora pois, ela iria estourar mais adiante. Portanto, esqueça a tripa e pense na linguiça como uma pasta de carne que você vai fritar.
Preparando as alheiras
Horas depois do início dos trabalhos, você está apto a experimentar esta saborosa iguaria. O preparo é fácil demais. No nosso caso, aquecemos uma chapa de ferro fundido na churraca. Quando estava tinindo de quente, joguei lá um golinho de azeite só pra molhar a chapa. Na sequencia, joguei uma colherada de alheira, e, com a espátula, fui amassando aquela pasta até ficar fininho.
Depois, é só deixar lá e ir virando até ficar meio queimadinho dos dois lados. É assim que a alheira fica legal, porque o queimadinho é, na realidade, pão queimadinho. Pão queimadinho temperado. Com carnes. Com azeite. Não tem jeito disso ficar ruim.
Com isso, dei, junto com meu pai, o meu passo no resgate de uma tradição familiar, o que, por si só, já é motivo de muito orgulho. E ainda por cima, ficou uma delícia. Ah, você tem que experimentar essa verdadeira tradição familiar. A pena é que vovô não está aqui pra experimentar a minha alheira. O lado bom é que todo o resto experimentou, porque nossa receita rendeu 5kg de linguiça. Aí foi só separar em saquinhos e mandar pra vó, pra tia, pra irmã...
Em resumo, uma receita difícil e que dá muito trabalho, mas é muito fácil de acertar o ponto e extremamente saborosa. Uma verdadeira iguaria.
Custo: Foi caro. Gastamos, fácil, uns R$40,00. Mas são 5kg de comida, né?
Rendimento: 5kg, ué. Muita comida.
Tempo de preparo: Nossa, umas 10 cervejas na cozinha, mais umas 3 na churraca. Sirva bêbado.